Por vezes, as razões inconfessadas são as mais fortes para que decisões sejam tomadas. Buscam-se fundamentos supostamente procedentes. Mas, no fundo, são aqueles desejos, sentimentos e preconceitos que nos levam, verdadeiramente, a chegar à determinada conclusão.
Esta semana, o Conselho Nacional de Justiça, exercendo sua competência revisional e extraordinária do trabalho das corregedorias dos Tribunais de Justiça do país, corrigiu um grave erro praticado pelo Tribunal de São Paulo que, em 2020, demitiu um juiz, Senivaldo dos Reis Júnior, por suposta atividade como coach.
Para que nosso ouvinte possa compreender, a atividade da magistratura é extremamente regrada e é incompatível com diversas outras atividades, isso por determinação de nossa Constituição. Inclusive, a docência somente é permitida se esta não conflitar com o regime de trabalho do juiz. Sobre a atividade de coaching que, resumidamente, é aquele de treinar, motivar e ensinar técnicas às pessoas para que atinjam seus objetivos (não entrarei no mérito do caráter científico que é questionado por alguns ou na qualidade de muitos desses profissionais do coaching que se espalham país afora), essa atividade não é considerada docência e, portanto, não pode ser exercida pelos magistrados em geral. É um entendimento do CNJ, que foi aplicado no caso pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Mas, onde está o erro do caso de Senivaldo?
A grande razão para que o CNJ reformasse a decisão do Tribunal paulista foi a desproporcionalidade da pena.
Conforme consta dos autos, foi o próprio Senivaldo que comunicou sua instituição de que exercia determinadas atividades numa escola de preparação para concursos públicos. Recebida a resposta da incompatibilidade, o juiz teria cessado imediatamente aquelas atividades. Entretanto, meses depois, a Corregedoria daquele Tribunal encontrou materiais de estudo para concurso, preparados por Senivaldo, ainda disponíveis na Internet para aquisição.
Só que o que poderia ter virado um pedido de explicações, tornou-se a via crúcis do jovem magistrado. O Tribunal de Justiça de São Paulo demitiu Senivaldo.
Ocorre que, em situação muito semelhante, julgada logo depois, o mesmo Tribunal, analisando o caso de outros 17 juízes, acabou por ser muito menos severo em suas considerações e arquivou o procedimento. Qual era a diferença entre estes e o caso de Senivaldo?
Alguns poderiam argumentar que os outros 17 eram juízes já titulares. Senivaldo, por outro lado, era um juiz substituto, sem, portanto, a garantia da vitaliciedade, que é garantida pela Constituição.
Mas, olhando mais profundamente alguns depoimentos e razões de voto de alguns desembargadores daquele Estado, existe uma diferença que foi, de forma inconfessada, levada em consideração: Senivaldo se tornou juiz pela vaga das cotas raciais. Sim, Senivaldo é um juiz que se autodeclarou negro no concurso do TJ/SP e ocupou vagas que foram reservadas para o público de pessoas pretas ou pardas.
Considerações como “…é um candidato que ingressou inclusive na magistratura, na primeira fase com aquela nota menor dentro do sistema de cotas…” ou “…ele estaria vendendo uma receita que não serve para noventa e tantos por cento das pessoas, porque ele não atingiu aquele número de cotas, ao que consta, mas, de novo, eu não tenho certeza e não quero ser inconsequente e irresponsável dentro dessa afirmação.” foram devidamente registradas no processo e são de alguns dos julgadores do caso. Perguntou-se, até, se Senivaldo estaria deslumbrado com o cargo que ocupava, numa clara tentativa de perceber alguma inadequação do juiz ao novo mundo que ousara adentrar.
O sistema de cotas, concorde-se com ele ou não, tem realizado uma verdadeira revolução no acesso a determinados universos, antes reservados, ainda que não legalmente, a somente um grupo étnico no país. Segundo alguns levantamentos, o público universitário teve um acréscimo de cerca 400% de pretos e pardos.
Essa revolução deve chegar, também, no serviço público brasileiro, tendo em vista que o STF já declarou, ainda 2017, que as cotas raciais para ingresso nos concursos públicos são totalmente compatíveis com a Constituição. Para se ter uma ideia, segundo um censo do CNJ de 2010, apenas 1,4% dos juízes brasileiros se autodeclaravam pretos e 14% pardos. O total desse público na população brasileira é de quase 60%. Essa ausência fala e fala alto.
Quando se entende a importância do sistema de cotas para equalização dos acessos, num país em que as condições e oportunidades são abissais, relegando-se ao público dos brasileiros pretos e pardos um acesso sempre difícil e quase excepcional, casos como o de Senivaldo, em que considerações pejorativas são lançadas em razão da forma do seu acesso, mostram que ainda temos muito, como República Democrática, para melhorar.
Se o acesso de determinado candidato foi pelo sistema de cotas, isso não deve ser objeto de consideração, ainda mais por um órgão que tem a responsabilidade de manter o sistema de Justiça do Estado mais rico da Federação brasileira. O CNJ acabou corrigindo a injustiça, entendeu que o caso era de mera censura, que acabou não sendo aplicada em razão da prescrição da pena. Reposição da Justiça não somente para Senivaldo, mas para uma nação que se enxerga multicultural, inclusiva e no qual todos são iguais perante a lei.
Alberto Tapeocy, para Coluna “Direitos Fundamentais” da Rádio CBN Amazônia/Rio Branco, toda quinta, a partir das 7h.