Ser devedor, no Brasil, sempre pareceu um bom negócio. Isso porque, em razão do sistema jurídico que adotamos, a burocracia e as dificuldades para se conseguir recuperar um crédito são imensas.
É, inclusive, conhecida a expressão “ganhou, mas não levou” para se referir a processos em que se tem uma sentença favorável a um pleito levado à Justiça, mas essa mesma Justiça é incapaz de fazer o perdedor da demanda cumprir efetivamente o que foi decidido.
Entretanto, há algum tempo o nosso sistema vem tentando diminuir esse “bom negócio”.
Seja pela adoção de sistemas mais modernos de pesquisa de bens ou bloqueio de valores em nome dos inadimplentes, seja pela aprovação de uma legislação mais efetiva na busca pela satisfação de direitos.
Quanto a este último caminho, desde 2015, aqueles que possuem créditos para receber têm no Código de Processo Civil ferramentas mais amplas para forçar o devedor a realizar o pagamento.
O Código prevê que um Juiz pode, além daquelas medidas já mencionadas na lei (as chamadas medidas típicas), determinar outras “medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento da ordem judicial”. Estas são as medidas atípicas (art. 139, IV, CPC).
Por causa dessa autorização legal é que diversas decisões judiciais inovadoras foram prolatadas nos últimos anos. Desde apreensão de passaporte até proibição de participação em concurso ou licitação pública, passando pela apreensão de CNH.
Em razão dessas decisões judiciais é que o Partido dos Trabalhadores ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5.941), no ano de 2018, buscando que fosse reconhecida a invalidade do dispositivo do Código de Processo Civil que dá esses poderes extraordinários aos juízes. Segundo argumentou o Partido, esses poderes feririam direitos fundamentais dos devedores.
Entretanto, o STF acabou por considerar que a norma é constitucional. O maior fundamento para essa conclusão é que possíveis abusos e desrespeitos a direitos fundamentais só pode ser avaliados diante do caso concreto. Algumas dessas medidas podem ser realmente desarrazoadas. Outras, completamente adequadas. Mas a avaliação deve ser caso a caso.
O Min. Luiz Fux citou, como exemplo de medida excessiva, a apreensão de CNH de um devedor que tenha como profissão ser motorista de táxi. Como esse devedor poderia obter seu mínimo existencial, se seu principal instrumento de trabalho fosse inviabilizado? Já uma apreensão de passaporte de um devedor que demonstra ter condições de fazer uma viagem internacional é uma medida totalmente adequada e razoável.
Para os Ministros, se a ADI fosse julgada procedente, o que aconteceria é que o poder geral de cautela dos juízes seria diminuído. O sistema não pode pressupor que o juiz tomará uma medida irrazoável. O normal é que as medidas sejam proporcionais. Quanto aos excessos, as decisões comportam recursos. Podem ser desafiadas dentro do próprio processo e, com isso, ser corrigidas.
Ora, num país em que praticamente metade das ações hoje em curso está na fase de execução, este foi um julgamento muito importante. Alguns têm criticado porque a decisão teria dado mais importância ao crédito dos autores do que aos direitos fundamentais dos devedores. E entre o dinheiro e um direito fundamental, este é mais importante, sem dúvida.
Mas esta é uma leitura superficial. A decisão do Supremo foi bastante razoável e prestigiou a autoridade do Poder Judiciário que tem como função precípua a pacificação da sociedade por meio da reposição de direitos, inclusive o direito ao crédito, quando são violados. Nada adianta afirmar que o monopólio da força é do Estado, impedindo-se os particulares de buscarem justiça com suas próprias mãos, se na hora em que se socorre do Judiciário, este não pode dar efetividade às suas próprias decisões.
Além disso, os direitos fundamentais não são absolutos e comportam restrições. E não é verdade que a decisão privilegia o direito de crédito tão somente. Se o STF declarasse, de antemão, sem análise do caso concreto, que um juiz não pode lançar mão de outras medidas atípicas, o que estaria fazendo é restringir o direito fundamental do credor de ter amplo acesso ao Judiciário. Temos, pois, um conflito de direitos fundamentais e não simplesmente um conflito que envolve dinheiro apenas.
Por fim, o Supremo disse o óbvio, que as decisões que aplicarem medidas atípicas devem respeitar direitos fundamentais do devedor, dentre eles, o direito ao contraditório e ampla defesa. Além disso, é possível se defender que os critérios já criados pelo Superior Tribunal de Justiça, corte inferior ao Supremo, estão plenamente válidos, quais sejam, a decisão deve ser motivada, as outras medidas devem ter sido esgotadas, deve haver indícios de riqueza e que o devedor está ocultando bens, a medidas deve ser proporcional e razoável, devendo ser, dentre várias opções, a que for menos onerosa para o devedor.
O que se espera com essa confirmação de constitucionalidade declarada pelo Supremo é que a arte de dever no país seja cada vez menos atraente.
Eu sou Alberto Tapeocy, esse foi mais um conteúdo para Coluna “Direitos Fundamentais” da Rádio CBN Amazônia/Rio Branco, toda quinta, a partir das 7h.
Até a próxima!