Semana passada, a imprensa noticiou um caso grave de violação de direitos trabalhistas contra um grupo de trabalhadores na região produtora de uvas e vinhos em Bento Gonçalves, uma região também muito visitada por turistas interessados na cultura do vinho.
Descobriu-se que mais de 200 trabalhadores eram submetidos à condição análoga à escravidão. Quando a fiscalização encontrou estas pessoas, elas informaram que eram extorquidas, ameaçadas, agredidas e torturadas com choques elétricos e spray de pimenta. Todos eram empregados de uma empresa que fornecia mão de obra terceirizada para as vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi. Estas negam qualquer conhecimento da situação desses trabalhadores.
Este é mais um episódio triste de precarização grave das condições de trabalho. Mas, o que seria realmente um trabalho em condição análoga à escravidão? Como isso é tratado em nosso Direito?
Inicialmente, preciso lembrar que o combate ao trabalho em condição análoga à de escravo é um compromisso internacional assumido pelo Brasil em diversos documentos. Desde a Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura de 1926 até o Protocolo de Palermo de 2000, passando por algumas Convenções da Organização Internacional do Trabalho, além do conhecido Pacto de São José da Costa Rica de 1969 e ratificado pelo Brasil em 1992, em todos estes o nosso país assumiu perante a comunidade internacional o dever de reprimir a servidão e a escravidão em todas as suas formas.
E isso está muito claro também no ordenamento interno, pois a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, a prevalência dos direitos humanos, a proibição da tortura ou o tratamento desumano ou degradante são princípios ou direitos fundamentais previstos na nossa Constituição. Esta nossa Carta Magna inclusive prevê que a função social da propriedade, princípio importante da nossa ordem econômica, só é cumprida com a observância dos direitos dos trabalhadores e diante de uma exploração da atividade que favoreça o bem-estar não somente dos proprietários, mas também dos trabalhadores.
O trabalho análogo à escravidão, que pode receber várias outras denominações como exploração precária do trabalho, trabalho escravo, regime de semiescravidão, trabalho degradante, dentre outros, ao contrário do que muita gente imagina, não está relacionado a imagens de pessoas presas em correntes, recebendo chicotadas ou atrás das grades, sendo libertadas somente para produzir. Na verdade, qualquer relação de trabalho que não cumpra minimamente as exigências da lei, que diminua o grau de liberdade do trabalhador em querer ou não exercer o trabalho, que viole sua dignidade, inclusive com um meio ambiente do trabalho que observe padrões sanitários que assegurem a saúde do trabalhador, pode ser considerado um trabalho análogo à escravidão.
Para chegar a essa conclusão, a fiscalização pode analisar se existe qualquer constrangimento físico ou moral em face dos trabalhadores, podendo considerar o local de trabalho sem higiene, falta de EPIs gratuitamente fornecidos pelo empregador, submissão dos trabalhadores a trabalho exaustivo (seja por uma jornada muito extensa, seja por realização de esforço físico acima do permitido) ou, ainda, pela existência de uma prática conhecida por truck system que é o endividamento do trabalhador, com venda de produtos que ele só consegue comprar do seu empregador e, com isso, impedindo sua saída se a dívida não for paga.
Quanto às consequências, as pessoas físicas podem ser condenadas não somente às graves repercussões econômicas que podem ser impostas pela Justiça do Trabalho, mas, também, responderão criminalmente. O art. 149 do Código Penal tipifica como crime submeter alguém à condição análoga à escravidão. Esta lei equipara a este crime qualquer tipo de cerceamento do uso de meio de transporte por parte do trabalhador, a manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho ou quando se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, tudo com o fim de retê-lo no local. A pena vai de 2 a 8 anos, podendo ser aumentada no caso de ser praticada contra criança ou adolescente ou quando praticado por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Além disso, há as consequências contra as empresas e, aqui, refiro-me às vinícolas, que vieram a público negar qualquer participação nessas violações. Elas podem, sim, responder por todos os direitos trabalhistas que não foram respeitados. Não é porque o trabalho é terceirizado que o tomador do serviço se libera da responsabilidade social sobre essas relações. Uma das empresas, inclusive, confessa que nunca tinha visitado as acomodações dos trabalhadores de Bento Gonçalves. Essa falta de fiscalização pode ser interpretada, legalmente, como um responsabilidade sobre todos os direitos trabalhistas dessas pessoas. Não somente isso, uma das consequências mais graves previstas na nossa Constituição é a expropriação das terras dessas vinícolas. Se todas as acusações ficarem comprovadas e demonstrado que os trabalhadores prestavam o serviço em terras dessas empresas, elas podem perder essas terras para o Estado, sem qualquer tipo de indenização.
Por não ser um caso isolado, o combate à precarização do trabalho não é uma pauta que pertence apenas a sindicatos de trabalhadores. Deve ser um compromisso da sociedade. Que a Serra Gaúcha, lugar belíssimo e com muita gente séria e trabalhadora, possa recuperar a imagem que ficou desgastada e aquela região possa erradicar o trabalho precário daquelas terras. Não somente ali, mas no restante do Brasil também.