Quais são os limites do humor?
Eis a pergunta que o Brasil está se fazendo desde a semana passada, quando o Poder Judiciário de São Paulo determinou que o humorista Léo Lins apagasse do Youtube um especial de comédia que foi lançado no final de 2022.
A decisão proíbe que o humorista publique, transmita, ou mantenha arquivos “com conteúdo depreciativo ou humilhante em razão de raça, cor, etnia, religião, cultura, origem, procedência nacional ou regional, orientação sexual ou de gênero, condição de pessoa com deficiência ou idosa, crianças, adolescentes, mulheres, ou qualquer categoria considerada como minoria ou vulnerável”. Além disso, Léo Lins também não poderá fazer qualquer menção a esses grupos minoritários ou fazer piadas com “temas sensíveis” em qualquer momento futuro, sob pena de multa de 10 mil reais por ocorrência.
O tema é sempre espinhoso. Afinal, estamos diante de um direito fundamental, que faz parte dos temas das liberdades de expressão, no caso, a liberdade artística, que foram amplamente prestigiadas pelo constituinte originário. Qualquer restrição a tais liberdades, a decisão deve conter uma carga argumentativa extremamente forte para justificar a possibilidade de sua mitigação.
Sim, é possível se falar em restrição da liberdade de expressão, uma vez que, como sempre falamos nesta coluna, não existem direitos fundamentais absolutos. Todos eles encontram limites em outros direitos fundamentais.
A honra, a imagem e a privacidade das pessoas também consistem em valores protegidos constitucionalmente, que precisam ser observados.
Limites da liberdade de expressão:
O tema do limite da liberdade de expressão já foi comentado por mim em outras oportunidades. Afinal, não é primeira vez que a Justiça é chamada a dizer se os tais limites que menciono foram ou não ultrapassados, pois, de acordo com o raciocínio da famosa frase do juiz Oliver Wendell Holmes, da Suprema Corte americana, “a liberdade de expressão não permite que alguém grite ‘fogo’ num teatro lotado”.
A liberdade de expressão não é uma permissão para a prática de crimes. Esse é um limite bem objetivo. Usar da palavra ou de uma obra de arte para defender o tráfico de drogas, o racismo, a xenofobia, o nazismo ou qualquer outro tipo de crime, claramente a proteção constitucional não alcançará a manifestação e a repressão judicial haverá de acontecer.
Entretanto, há casos em que os limites não são tão claros. Há quase quatro anos, o grupo humorístico Porta dos Fundos publicava um especial satírico no período de Natal, mostrando um Jesus gay, com um Deus amante da Virgem Maria, machista, inconveniente, quase como um pequeno satanás. Foram inúmeros os protestos e representações criminais na época e a Justiça, assim como no caso de Léo Lins, também determinou a retirada do episódio de uma plataforma de streaming. Era o sentimento religioso, no caso a religião mais difundida no Brasil, que estava em jogo.
Mais tarde, o Supremo Tribuna Federal acabou por derrubar a ordem judicial que determinara a retirada da peça humorística. Entendeu-se que a liberdade de expressão havia sido desrespeitada.
A Lei Antipiadas e suas consequências
No caso mais recente, alguns ingredientes podem ser mencionados. Além dos movimentos políticos identitários que têm se fortalecido mundo afora, como os da população LGBTQIA+, os dos negros e das mulheres, aprovou-se no início deste ano uma lei que equiparou o que antes era conhecido como injúria racial ao crime de racismo e trouxe causa de aumento de pena exatamente para estes casos de ofensas realizadas em contexto de shows e sátiras. No meio humorístico a lei ficou conhecida como Lei Antipiadas, afinal, a pena máxima prevista para quem faz piada com minorias no Brasil de hoje é maior do que as penas dos crimes de furto e sequestro.
Questionando os limites: Sátiras e grupos identitários
Quando comentei sobre o caso do Porta dos Fundos neste mesmo espaço, alertei para a importância do sentimento religioso das pessoas, que não era algo que seria fácil de ser ignorado, em que pese ter defendido a liberdade de expressão naquele episódio. E fiz o seguinte raciocínio: e se as ofensas tivessem sido com grupos identitários? Se fosse piada com gays? As ofensas permitidas seriam apenas com grupos majoritários? Apenas brancos, héteros e cristãos podem sofrer sátiras? Enfim, parece que minhas perguntas eram proféticas mas, pelo contrário, era algo que algum momento ocorreria. E ocorreu.
Não se pode esquecer que a arte sempre teve o papel de questionar a sociedade e suas instituições. Até mesmo os grupos identitários, com todo o respeito a suas histórias e lutas, podem, sim, ser questionados. No debate político, ninguém tem o monopólio do discurso e pode ser contraditado, seja por meio de texto publicado na internet ou seja por meio de uma obra artística. Defender o contrário, que alguns grupos são intocáveis, é um posicionamento antidemocrático.
Responsabilidade do humorista: Excessos, ofensas e possíveis consequências
No caso de Léo Lins, a decisão da juíza que determina a proibição de qualquer manifestação futura do humorista que trate de temas sensíveis é uma clara prática de censura, proibida pelo nosso ordenamento jurídico. Proibição prévia é censura e não existe outro nome para isso. Entretanto, os excessos cometidos pelo humorista, com piadas que passam do limite do razoável que ofendem a imagem, honra e a privacidade de pessoas, independentemente de serem grupo minoritários os alvos dessas piadas, podem ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário e o autor pode ser responsabilizado.
Vamos acompanhar o caso e ver como o Judiciário dará a resposta neste caso, pois esta decisão não deve ser a palavra final.
Eu sou Alberto Tapeocy, e essa foi mais uma edição da Coluna “Direitos Fundamentais” na Rádio CBN Amazônia/Rio Branco.