Sousa, Melo & Tapeocy Advogados

O marco temporal das terras indígenas no Congresso Nacional

O Marco Temporal das Terras Indígenas: Projeto de Lei 490/07 é aprovado pela Câmara dos Deputados

Esta semana vimos mais um capítulo da novela sobre o marco temporal da ocupação de terras indígenas, desta vez pelo Congresso Nacional, que, por meio de sua Câmara dos Deputados, aprovou o PL 490/07, que pretende que sejam consideradas terras ocupadas tradicionalmente pelos povos indígenas, para fins de demarcação, aquelas ocupações existentes na data da promulgação da Constituição Federal, ou seja, 5 de outubro de 1988.

Assim, se uma determinada terra não era habitada pelos povos indígenas naquela data, independentemente da causa, ela não poderá ser reconhecida como tradicionalmente ocupada. A aprovação desse projeto foi considerada mais uma derrota do governo Lula no Congresso, mas ainda será apreciado pelo Senado Federal.

Fiz referência a novela, pois a aprovação desse projeto está relacionada a um processo que se encontra no Supremo Tribunal Federal e se arrasta naquela Corte desde o final de 2016. É o Recurso Extraordinário n. 1.017.365, que teve apenas 2 votos até o momento. Um contra o marco temporal, do Relator Min. Edson Fachin, e outro a favor, do Min. Nunes Marques. Em evento ocorrido em abril, a Presidente, Min. Rosa Weber, anunciou que a retomada do julgamento acontecerá na próxima semana, dia 7 de junho.

Considerando o histórico de julgamentos do Supremo acerca de causas sensíveis aos direitos indígenas, não é difícil prever que o marco temporal seja considerado inconstitucional pela Suprema Corte. Por isso, a reação do Congresso Nacional pode ser considerada como um contra-ataque diante do iminente julgamento que será retomado.

Efeito Backlash

No meio jurídico, chamam-se essas reações do poder político em face de decisões contra majoritárias do Poder Judiciário de efeito backlash, literalmente, do inglês, retaliação. Quando o Judiciário delibera sobre um determinado tema sensível da sociedade, como direitos da comunidade LGBTQIA+, aborto, pesquisas de células tronco, ações afirmativas, etc., por vezes se percebe uma reação do Legislativo ou do Executivo, com aprovação de leis e medidas que vão contra o decidido no processo judicial. Esse é o efeito backlash.

É importante que se diga que a reação, na maior parte das vezes, não é contra os fundamentos jurídicos que estão na decisão, mas contra as razões ideológicas que dão o pano de fundo da questão. Por isso, se o posicionamento judicial é mais progressista, geralmente as reações acabam vindo de setores mais conservadores da sociedade. O contrário também acontece. Contra decisões mais conservadoras, setores progressistas podem se levantar.

A aprovação do marco temporal pelo Congresso está longe de encerrar o debate.

Para os que defendem o marco, esse critério traria segurança jurídica para todos os envolvidos nos processos demarcatórios de terras indígenas, entre eles, os proprietários de terras rurais, que sempre acabam sendo afetados, quando do reconhecimento dos direitos dos povos originários. A AGU defende que esse critério foi o utilizado pelo STF no famoso caso da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e, ainda, em pelo menos outros 7 casos subsequentes. Ignorar isso, traria insegurança jurídica para os processos demarcatórios.

Argumentos Contra o Marco Temporal: Violação dos Direitos Indígenas e Ignorância das Agressões Sofridas

Por outro lado, diversas organizações que defendem os direitos do povos originários e o Ministério Público Federal entendem que o critério ignora o espírito da Constituição Federal que, assim como as constituições anteriores, reconhece o direito “originário e congênito” desses povos sobre suas terras e faz pouco caso dos diversos processos de agressão aos indígenas, constantemente expulsos de suas terras e que, portanto, naquela data de promulgação da Constituição, não estavam sobre um determinado território em razão da violência contra eles praticada.

Para Fachin, esse critério foi utilizado pelo Supremo em razão do contexto específico do caso Raposa Serra do Sol, apenas para operacionalizar o processo de demarcação, não podendo ser usado em detrimento das demais comunidades e não pode ser usado como justificativa para dificultar o reconhecimento desse direito fundamental indígena.

Não se pode ignorar que o sistema jurídico brasileiro, há várias gerações, sempre reconheceu os direitos dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Afinal, para o indígena, a relação com a terra não é de mera posse, visando um desenvolvimento econômico. É na terra que esses povos podem exercer seus costumes, línguas, crenças e tradições, assim como afirma o art. 231 da Carta de 1988.

O Critério de Ocupação Tradicional: Definição e Contexto

É certo, também, que o regime constitucional não reconheceu uma posse com base numa ocupação “imemorial”, ou seja, uma ocupação não efetiva, mas fundamentada em algum passado longínquo. Fosse esse o critério, todo o território brasileiro seria terra indígena, automaticamente. Na verdade, o §1º do artigo 231 define que são terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas que forem por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais para seu bem-estar e as necessárias para sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Reconhecimento da Violência Sofrida pelos Povos Indígenas e sua Relevância no Debate

Entretanto, o histórico de violência praticada contra esses povos não pode ser desconsiderado. Há casos em que a não ocupação se deve exatamente pela sistemática agressão a esse direito que, volto de novo à Constituição, é imprescritível.

A Necessidade de uma Resposta Final do Supremo Tribunal Federal: Proteção dos Direitos Indígenas e o Cumprimento da Constituição

Há muito o STF já deveria ter dado uma resposta final à questão. O Brasil precisa responder aos seus povos originários quanto à garantia de seus direitos fundamentais, dizendo se a letra da Constituição é apenas um argumento retórico ou se, efetivamente, será um escudo protetor para futuras demarcações das terras indígenas.

Por Alberto TapeocyColuna “Direitos Fundamentais” na Rádio CBN/Amazônia-Rio Branco, toda quinta, a partir das 7:00h

Sair da versão mobile