Nas últimas semanas, chegando perto do segundo turno das eleições deste ano, temos visto a nossa Corte Superior Eleitoral trabalhar intensamente, não sem uma chuvarada de críticas e discursos apaixonados, gritos virtuais de condenação a censura ou de aplausos pelas decisões tomadas.
Novamente, voltamos ao debate sobre a utilização de fake news, os limites da liberdade de expressão e até onde o Judiciário pode vetar a fala ou a manifestação política de um ou vários indivíduos.
O trabalho do Tribunal Superior Eleitoral é hercúleo e manter a eleição em níveis civilizados e dentro da legalidade e constitucionalidade que se espera é uma tarefa quase impossível, especialmente pela velocidade dos ataques de parte a parte nessa disputa eleitoral.
Mas uma das coisas mais importantes que preciso rememorar, e que já comentei aqui nesta coluna em outras oportunidades, é que a liberdade de expressão consiste em um direito fundamental nuclear em qualquer democracia. O direito de falar o que se pensa e de defender suas ideias na arena pública é essencial para a formação da opinião e para uma livre eleição de governos.
Entretanto, como todo direito fundamental, a liberdade de expressão encontra limites que são postos pela própria Constituição Federal. O primeiro deles é o anonimato. A censura está proscrita pelo nosso ordenamento, mas deve-se ter responsabilidade pelo que se diz. Devo responder pelas minhas falas e escritas. Para isso, é essencial que se saiba a autoria do que é dito, pois, afinal, se houver excessos, saberemos a quem processar por eventual crime contra a honra e a intimidade de alguém.
O segundo limite está exatamente no exercício dos demais direitos fundamentais. Além da honra e intimidade das pessoas, no tocante ao processo eleitoral, o direito à informação correta, verdadeira e extreme de manipulações, é um direito fundamental do eleitor.
O jurista e filósofo italiano Norberto Bobbio escreveu uma série de artigos reunidos no livro “O Futuro da Democracia” e, entre eles, Bobbio analisa as chamadas promessas da democracia que acabaram sendo frustradas na prática. Entre essas promessas, ele aponta a erradicação do “poder invisível”. Para Bobbio, uma das promessas da democracia é que os processos de consolidação da vontade da maioria se dariam sempre publicamente, à luz do dia, longe das influências de “poderes invisíveis”, muitas vezes escusos e longe de atingir o bem comum da nação.
No caso de Bobbio, provavelmente ele estava se referindo à máfia italiana. Entretanto, não é difícil que a gente também identifique um “poder invisível” que tem prejudicado o processo de decisão dos eleitores: as fakes news.
Isso porque, a democracia requer que os cidadãos sejam esclarecidos quanto às opções que lhes são postas. É exatamente por essa razão que o Poder Judiciário está munido de instrumentos que possam afastar veículos de informação, canais na internet, aplicativos de streaming, perfis de redes sociais que, consistente e comprovadamente, utilizam-se da mentira como processo de informação do eleitor. Afinal, informar o eleitor com mentiras é desinformar, é praticar estelionato eleitoral, para fins de subverter o resultado da eleição.
Que é incômodo ver, como têm sido chamados os ministros do TSE, 7 burocratas de Brasília decidirem o que é verdade ou mentira, isso é óbvio. Mas, quando um dos lados da disputa parte para a tentativa inclusive de desacreditar todo o processo eleitoral, a reação mais dura do Tribunal era de se esperar.
Entretanto, é possível fazer críticas ao trabalho da Corte Eleitoral. Dou o exemplo de duas decisões que se assemelham e que dão razão a interpretações de possível censura a um desses lados da eleição.
Lembro, aqui, quando o TSE manteve vídeos do PT em que mostram Lula chamando o atual presidente da República de “genocida”, “miliciano” e “fascista”. O fundamento para a manutenção do vídeo foi que, apesar da crítica ácida, a liberdade de expressão deveria ser homenageada no caso, pois esse tipo de dureza no debate seria da normalidade da disputa eleitoral.
Por outro lado, recentemente, o mesmo Tribunal determinou que a campanha bolsonarista retirasse peças de propaganda em que Lula é chamado de “ladrão” e “corrupto”. Neste caso, o direito à presunção de inocência do ex-presidente, segundo o TSE, estaria sendo violado e a propaganda estaria levando as pessoas a falsas conclusões sobre o processo que envolveu Lula.
Ora, nestes dois casos específicos, é possível identificar dois pesos e duas medidas.
É verdade que não houve um decreto de absolvição de Lula nos processos da operação Lava Jato. O que houve foi a nulidade dos processos. Mas, o status jurídico constitucional de Lula é de inocente. Não existe nada no mundo jurídico que se assemelhe com algo como a “descondenação”. Lula não foi “descondenado”, ele simplesmente manteve a sua presunção de inocência. Então, tecnicamente falando, Lula é inocente.
Por outro lado, em que pese serem possíveis duras críticas ao presidente Bolsonaro no tocante a condução da pandemia (e aqui não vou entrar no mérito de qual a parcela de mortes poderia ser atribuída à má gestão do seu governo), o correto é dizer que, tecnicamente, Bolsonaro também não é genocida. O genocídio é considerado, inclusive, como um tipo de crime contra a humanidade. Gravíssimo, portanto, o mesmo se pode dizer quanto a acusação de miliciano. Se não há trânsito em julgado da culpabilidade do presidente quanto a fazer parte de grupos de milícias, formados para a prática de crimes diversos, chama-lo assim é, também, atentar contra seu status jurídico-constitucional de inocência.
Ou bem o TSE proibia ambas as peças, em nome da proteção do direito fundamental a honra pessoal dos candidatos e em nome da correta notícia para a formação da opinião do eleitor, ou permitia que fossem veiculadas, em nome da liberdade de expressão. Afinal, quem nunca chamou um político de ladrão? Ou de corrupto? Assim como defendeu Cármen Lúcia, no caso da acusação de genocida em face de Bolsonaro, a fala ácida e dura contra um candidato, chamando-o de ladrão e corrupto, é a coisa mais corriqueira do debate eleitoral, desde tempos imemoriais.
Novamente, repito, o papel do Tribunal é importantíssimo. O próprio Bolsonaro se beneficiou, recentemente, do trabalho da Corte, que impediu a utilização de falas sobre meninas venezuelanas, que ficaram amplamente conhecidas.
Entretanto, ao trazer para si a responsabilidade de vetar falas de parte a parte, esse julgamento precisa ser medido com o mesmo peso. Do contrário, as críticas de censura prévia e desmedida serão um lugar comum nessa disputa eleitoral.
Alberto Tapeocy, para Coluna “Direitos Fundamentais” da Rádio CBN Amazônia/Rio Branco, toda quinta, a partir das 7h.