Na mitologia grega, existe uma figura muito conhecida, que já foi retratada, inclusive, em animações da Disney. A figura do semi-deus Hércules, que é o nome em latim de Héracles, filho de Zeus e da mortal Alcmena. Hércules, dotado de uma força descomunal, realizou diversos trabalhos, matando e aniquilando monstros e, com isso, mantendo a humanidade segura. Por seus feitos, Hércules foi depois aceito no Olimpo, onde moram os deuses gregos.
Lembro da figura de Hércules, pois é exatamente o papel que os juízes, segundo a teoria do jus-filósofo americano Ronald Dworkin, muito conhecido na academia brasileira, especialmente no meio jurídico, devem exercer ao interpretar uma determinada norma jurídica, sobretudo sob o ponto de vista constitucional. A estes juízes teriam sido dado forças poderosas para que, aliando a prática com a teoria jurídica, afastem ameaças a direitos e injustiças que possam existir na sociedade. Aplicando a teoria de Dworkin, sem entrar aqui em academicismos (o que foge do escopo de nossa coluna), os 11 ministros da nossa Suprema Corte seriam nossos Hercules.
Entretanto, a pergunta provocativa que faço, no tocante ao julgamento da ADPF 442, ajuizada pelo PSOL, que busca descriminalizar o aborto até a 12ª semana da gestação, é: a democracia precisa de heróis? Em outras palavras, o Supremo é a instância democraticamente constituída para o debate de tamanha envergadura?
Nesse debate, não podemos ignorar que a Cortes constitucionais no mundo inteiro prestam-se a alguns papéis que são importantes dentro de uma democracia. Afinal, democracia não é o mesmo que tirania da maioria. Voltando a Dworkin, em que pese a moral da maioria acabar moldando as regras de convivência da comunidade, para uma democracia ser verdadeiramente saudável, há de existir algum espaço de liberdade do indivíduo para que, sob a reflexão de sua moral, possa agir e se autoafirmar perante o resto da comunidade, sem que sofra qualquer violência contra sua posição única. Nesse ponto, o papel do Supremo seria exatamente o de defender as liberdades das minorias para que não sofram ou sejam aniquiladas perante a maioria. Chamamos isso de papel contra majoritário, próprio das decisões tomadas pelo Poder Judiciário.
Daí, volto à pergunta que fiz. Esse tema deve ser objeto do exercício do papel contra majoritário do Supremo Tribunal Federal? Apesar das vozes dissonantes sobre o tema, com todo respeito à Ministra Relatora que entendeu contrariamente ao que vou afirmar, entendo que este é um tema que não pode ou não poderia ser objeto de julgamento pelos ministros do STF.
O argumento usado pelo PSOL para pedir que a recepção dos artigos do Código Penal, que tratam do aborto, seja feita de forma parcial, a partir de uma leitura em que seria permitida a interrupção da gravidez até a 12ª semana (3 meses de formação do feto), seria a afirmação da dignidade da mulher e a proteção dos direitos fundamentais da liberdade, igualdade, cidadania, saúde, planejamento familiar, razoabilidade, proporcionalidade etc.
Entretanto, estamos diante daqueles chamados hard cases (casos difíceis), em que a afirmação dos direitos invocados na ação requer, necessariamente, o debate sobre os direitos fundamentais de outras pessoas, ainda que não totalmente formadas. Sim, estamos falando da dignidade de seres humanos ainda em formação.
Se as mulheres são a minoria sob defesa na ação (minoria do ponto de vista da hipossuficiência fática e jurídica na sociedade), razão pela qual estariam seus direitos sendo objeto do papel contra majoritário do STF, o que dizer dos direitos fundamentais de outra minoria, que sequer tem direito a voz e são incapazes de se defender?
Ora, não se pode ignorar que nosso ordenamento, ainda que reconheça a aquisição da personalidade jurídica somente no nascimento com vida, põe a salvo os direitos do nascituro, os direitos dos bebês, desde a concepção. O artigo 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos (o famoso Pacto de San José da Costa Rica), do qual o Brasil faz parte e tem status supralegal em nosso ordenamento, afirma que “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.”
Em 2008 foi aprovada lei importante em função dos direitos fundamentais dos nascituros: a Lei dos Alimentos Gravídicos. Apesar do titular dos direitos dessa lei ser a mulher grávida, já temos importantes precedentes no âmbito do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo direitos fundamentais diretamente aos bebês, ainda não nascidos, desde sua concepção.
Existe, portanto, um ordenamento jurídico que reconhece a dignidade do nascituro, desde a concepção, que não pode ser ignorado.
Ora, o debate que se põe perante a sociedade é a afirmação da dignidade da mulher a partir da declaração da indignidade dos nascituros, como bem observou o teólogo e cientista da religião Guilherme de Carvalho, em artigo publicado na semana passada. É um debate, portanto, de tal envergadura, de tão extrema gravidade, que não pode estar sob o poder unicamente de 11 Hércules. Que modelo de nação queremos e o que faremos diante dos direitos e liberdade das mulheres perante a vida de crianças ainda em formação é um debate para participação máxima de toda a sociedade.
É momento, portanto, de autocontenção da Suprema Corte, reconhecendo que há outras instâncias para esse objetivo. Os juízes do STF não sofrem o peso do sufrágio. Quem sofre são os deputados e senadores. Estes, seja por meio da aprovação de um plebiscito para consulta direta, seja por meio da aprovação de uma nova lei (participação popular indireta). Ao contrário do que se possa pensar, não defendo a interdição do debate sobre esse tema. Pelo contrário, em nome da democracia, ele tem mais é que ser debatido. Quanto mais se conversar, melhor.
É por tal razão que defendo que não é no STF que deve se encerrar a discussão. Nesse tema, precisamos de menos heróis, menos Hércules. Precisamos de mais debate por parte das instâncias mais adequadas para esse papel. O princípio democrático agradece.
Coluna Direitos Fundamentais
Toda quinta-feira, a partir das 7h, você pode acompanhar a coluna “Direitos Fundamentais“ de Alberto Tapeocy na Rádio CBN/Amazônia-Rio Branco. Nessa coluna, ele traz insights e análises sobre questões relacionadas aos direitos fundamentais, oferecendo um olhar crítico e aprofundado sobre temas importantes para a sociedade.