Um antigo conto do autor francês François Andrieux nos remete à Prússia de 1745, quando era governada pelo Rei Frederico II. Perto das terras do palácio, havia um pequeno moinho, que parecia incomodar o governante, pois “estragava” a paisagem. Mas o humilde dono do lugar se recusava a sair dali. Ao ser contestado pelo próprio governante, a resposta que recebeu foi “ainda há juízes em Berlim”. Frase célebre que remete à confiança de que injustiças podem ser desfeitas pelo Poder Judiciário.

Na semana passada, o deputado Domingo Sávio (PL-MG) apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição que pretende dar poderes ao Congresso Nacional para suspender as decisões não unânimes sobre constitucionalidade de leis que o Supremo Tribunal Federal proferir.

A proposta não inédita. Nos idos de 2011, o Partido dos Trabalhadores – PT também apresentou proposta parecida, mas foi arquivado em 2019. Pelo que se tem assistido, o projeto do Partido Liberal deve ter o mesmo destino. Isso se deve não somente pela falta de ambiente político para aprovação da PEC. Mas, sobretudo, porque a proposta é claramente inconstitucional.

Ela fere o sistema de freios e contrapesos desenhado pelo constituinte de 1988, que definiu que é o Poder Judiciário quem deve dar a última palavra no tocante à conformação das leis com a nossa Carta Fundamental. Ao alterar esse desenho, a PEC fere, frontalmente, a separação dos Poderes, que é uma cláusula pétrea, ou seja, não pode ser objeto de mudança, conforme determina o art. 60, §4º, do Texto Magno.

Lembro, aqui, que o Brasil é herdeiro de duas tradições históricas no tocante ao controle de constitucionalidade das leis. O primeiro, de origem norte-americana, é o chamado sistema difuso, em que casos concretos são analisados por qualquer juiz, de qualquer grau de jurisdição. Nesta hipótese, havendo declaração de inconstitucionalidade de uma lei, esse ato vale apenas para o caso debatido, não podendo ser aplicado, de forma automática, para os demais, ainda que sejam semelhantes. O outro sistema, chamado de austríaco, é o chamado controle concentrado de leis, em que um determinado órgão exerce, de forma abstrata e com efeitos sobre todo os poderes (judiciário, legislativo e executivo), o controle de constitucionalidade de leis. No Brasil, este órgão é o STF.

Em sua tradição, nosso sistema acabou por admitir os dois sistemas, criando-se uma proteção complexa dos valores e direitos que estão previstos em nossa Constituição.

Obviamente, os conflitos com os outros Poderes sempre aparecem. Mesmo no nascedouro do sistema de controle de constitucionalidade, nos Estados Unidos do início do séc. XIX, a famosa decisão do Juiz Marshall, presidente da Suprema Corte daquele país, proferiu uma fórmula que foi capaz de afirmar a competência do Judiciário em revisar qualquer lei que fosse contrária às regras e princípios da Constituição, mas, naquele caso, acabou por apaziguar a relação com o Poder Executivo, dirigido pelo marcante presidente Thomas Jefferson, recém-eleito naquele momento.

Já no Brasil do séc. XXI, muito se fala dos excessos que o STF e o Poder Judiciário como um todo têm praticado. Fala-se no ativismo judicial e na judicialização da política brasileira. E, pessoalmente, entendo que, sim, em muitos momentos nós vemos um Poder Judiciário hipertrofiado que acaba por extrapolar suas competências.

Mas, deve-se reconhecer, os demais poderes também têm culpa nesses excessos.

Afinal, quem elabora as leis somente deve fazê-lo diante das balizas da Constituição Federal. Todo tipo de aberração tramita pelas casas legislativas país afora e, de vez em quando, trazemos algumas delas aqui mesmo nesta coluna. Se nossos vereadores, deputados e senadores exercessem com maior responsabilidade o seu poder de criação das leis, menos questionamentos nós teríamos.

Aliás, não somente ao exercerem suas competências, mas por não exercerem seus deveres, as Assembleias Legislativas e o Congresso Nacional acabam sendo substituídos pelo Poder Judiciário. O Mandado de Injunção, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, a Ação Civil Pública (em diversos casos, ajuizada com efeitos erga omnes), são exemplos de remédios que são utilizados para atuação diante da omissão dos congressistas, quando eles não criam as leis que deveriam criar.

Por outro lado, não se pode esquecer que os demais poderes participam ativamente no processo de formação de tribunais brasileiros, especialmente no caso do STF, em que toda sua composição se dá por indicação do Presidente da República, com aprovação, após sabatina, do Senado Federal.

Não somente isso, são os partidos políticos os principais responsáveis pela judicialização da política. Eles próprios são os primeiros a levarem até o STF toda e qualquer discussão que deveria, em tese, ser resolvida pela política e pelos políticos.

Que os excessos do Poder Judiciário precisam ser denunciados, debatidos pela sociedade, e os próprios juízes, de qualquer grau de jurisdição, precisam exercer seus poderes sempre com deferência aos demais poderes e observando a gravidade de sua intervenção, é um ponto quase pacífico entre todos. Mas, não é desfigurando as bases de nosso sistema de controle das leis que tais males serão afastados. O exercício do controle das leis nada mais é do que uma forma de proteção do Estado de Direito e, por fim, da própria Democracia. Esta somente pode existir onde a Constituição é devidamente respeitada.

Sem isso, é possível que não possamos mais dizer que, em Berlim, ainda existem juízes.

Alberto Tapeocy, para Coluna “Direitos Fundamentais” da Rádio CBN Amazônia/Rio Branco, toda quinta, a partir das 7h.

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