Após o término da eleição, festa máxima da democracia, saindo derrotado o atual Presidente, Jair Bolsonaro, seus apoiadores, acusando fraude nas urnas (sem qualquer prova), tomaram as ruas, fecharam rodovias e, dentre as diversas pautas antidemocráticas, invocam, novamente, a história do art. 142 da Constituição Federal.
Já comentei aqui, em outra oportunidade, mas precisamos revisitar o tema e responder. De onde vem essa história de “intervenção militar constitucional”? O que realmente diz o art. 142 da nossa Carta Magna?
Essa interpretação é da pena do Dr. Ives Gandra, que prega a utilização do art. 142 para utilização das Forças Armadas como uma espécie de “poder moderador”.
Como falei na outra oportunidade, com essa tese, o prof. Ives Gandra não defende golpe ou intervenção militar no sentido que alguns querem dar. O que o professor ensina há mais de 3 décadas é uma possibilidade de se utilizar as Forças Armadas, no caso de um grave conflito, em que um dos poderes invadisse e a ameaçasse as competências de outro poder, a “instituição-vítima” poderia invocar o art. 142 e requisitar que as Forças Armadas, de forma pontual, interviessem naquele ato e, arbitrando o conflito, devolvessem a normalidade institucional.
Qualquer interpretação no sentido de tomada do Poder, não parte dessa interpretação de Ives Gandra. Ainda mais para intervir numa eleição que acabou de referendar a vontade da maioria e transcorreu sem sobressaltos ou fraudes.
Entretanto, mesmo essa interpretação do Prof. Ives Gandra não encontra ressonância no restante da doutrina constitucional e, muito menos, em qualquer precedente em nossos Tribunais.
No exercício da interpretação das normas legais, não é possível querer distorcer o texto da norma para caber qualquer vontade pessoal. Apesar de, por vezes nos depararmos com isso por parte de alguns juízes, existem limites e, por vezes, estão nas próprias palavras do texto. E o art. 142 da Constituição Federal não autoriza, de forma alguma, que um Poder invoque as forças armadas para que intervenha em outro Poder.
Não existe a figura do Poder Moderador na Constituição de 1988
Na verdade, a última vez que houve tal figura foi na Constituição Imperial de 1824, que dava ao Imperador essa atribuição. Ele pairava sobre todos os demais Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) para que velasse pela independência, equilíbrio e harmonia de todos os Poderes. Como dizia o art. 99 daquela Constituição, a figura do Moderador era inviolável e sagrada. Ele não poderia, de forma alguma, responder por suas ações. Ele poderia dissolver o Congresso, suspender magistrados, nomear Senadores.
Entretanto, desde a primeira constituição republicana, em 1891, essa figura simplesmente desapareceu. O que existe, para manutenção do equilíbrio entre os Poderes e como intérprete da Constituição, é a jurisdição constitucional. Ou seja, cabe ao Poder Judiciário ser o árbitro final do que diz a lei e a Constituição. E, conforme o art. 102 do atual Texto Constitucional, a guarda da Constituição cabe ao STF.
Goste-se ou não, este é o desenho da nossa atual Carta Magna. O que temos é um sistema de freios e contrapesos para buscar o máximo de equilíbrio entre os Poderes. E, no caso de conflito, a última palavra é do Poder Judiciário, porque a ele foi dada essa função.
Mas, e o art. 142? Então o que ele quer dizer com a afirmação de que as Forças Armadas se destinam à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem?
O que este dispositivo autoriza, tão somente, é a utilização das Forças Armadas como auxiliares na segurança pública, nos casos de grave perturbação social, na hipótese das forças policiais regulares não serem suficientes para a manutenção da ordem.
Além, portanto, da proteção do território nacional contra forças externas, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica podem, de acordo com os requisitos previstos na própria Constituição, ser usados para o restabelecimento da segurança da população contra agentes internos e, devolvida essa normalidade, imediatamente deixam de atuar. É a utilização das Forças Armadas na chamada GLO, Garantia da Lei e da Ordem. Nada mais do que isso.
Pensar diferente, seria colocar o Exército acima de todos os Poderes, como era a figura do Rei no Brasil Império, e, em última hipótese, o próprio Presidente como o moderador, pois, conforme a Constituição afirma, ele é o Comandante máximo das Forças Armadas. Invocar o art. 142, ainda que na forma como defende o professor Ives Gandra, não encontra apoio numa interpretação harmônica de todo o texto constitucional.
Definitivamente, portanto, não existe hipótese de intervenção militar constitucional ou qualquer coisa parecida com isso, ainda que recheada de eufemismos.
A invocação do art. 142, como tem sido feita pelos manifestantes nas ruas, nada mais é do que a tentativa de um desrespeito à democracia, um golpe à normalidade institucional, é tentar rasgar a Constituição.
Alberto Tapeocy, para Coluna “Direitos Fundamentais” da Rádio CBN Amazônia/Rio Branco, toda quinta, a partir das 7h.