Câmara aprova projeto que proíbe alterações ou acréscimos no texto da Bíblia

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Na quarta-feira passada, dia 23, o Congresso Nacional aprovou um projeto de lei bem curioso, pra dizer o mínimo. Refiro-me ao Projeto de Lei n. 4606/19, de autoria do deputado Pastor Sargento Isidório, do Avante/BA, cujo conteúdo possui apenas dois artigos.

Basicamente, o projeto busca proibir qualquer alteração, edição ou adição aos textos da Bíblia Sagrada, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento, bem como é garantida a pregação do seu conteúdo em todo território nacional.

Não existe nenhuma previsão de sanção contra aquele desrespeitar a futura lei. Então, a possibilidade da norma ter alguma força impositiva sobre a sociedade é quase nula.

Mas, o mais curioso não é isso. Na verdade, o projeto não esclarece nada quanto a qual texto da Bíblia Sagrada ele se refere.

Ora, nós estamos tratando de um texto religioso que está baseado em manuscritos que cobrem de 5 a 6 mil anos de história da humanidade. O projeto de norma legal não explica quais das versões serão protegidas. Por exemplo, é bem conhecida a diferença entre as bíblias católica e protestante. Enquanto a bíblia ligada à Igreja de Roma possui 73 livros, os protestantes geralmente utilizam uma versão de 66 livros. 7 dos livros contidos na bíblia católica são considerados apócrifos pelos protestantes, ou seja, livros que não teriam inspiração divina.

Há aquelas versões que atendem a determinados grupos religiosos. Por exemplo, os Testemunhas de Jeová, um grupo cristão minoritário dissidente, que não crê no dogma da Trindade, possui uma versão da Bíblia que retira quaisquer menções ou altera versículos que, segundo defendem, seria a melhor tradução que demonstra a inexistência desse dogma que se institucionalizou desde o Concílio cristão de Nicéia, em 325 d.C.

Estaria este texto protegido pela lei ou seria um texto ilegal?

Os judeus também adotam uma versão da Bíblia, que rejeita por completo o Novo Testamento. A Bíblia Hebraica é protegida por esse texto legal ou não?

Além disso, há uma infinidade de traduções e versões para atender grupos diferentes, que em geral não alteram o conteúdo da mensagem, mas não se sabe se o projeto de Lei as protege. Tem-se a Bíblia pela Nova Tradução da Linguagem de Hoje, que é, na verdade, uma paráfrase das línguas originais para uma forma mais simples da língua portuguesa. Um pastor lançou há algum tempo a Bíblia Freestyle, que é uma outra paráfrase em linguagem ainda mais popular e de fácil acesso. Há, até, para o horror de alguns, a Bíblia em Mangá, que são os quadrinhos em estilo japonês, voltado para o público infanto-juvenil.

À luz do Projeto de Lei nada disso seria possível.

Na verdade, essa tentativa de imposição de norma legal é um verdadeiro atentado à laicidade do Estado. Afinal, a separação entre Estado e Igreja, um ganho civilizatório, é um princípio que não somente protege o Estado, que deve manter equidistância entre todos os ramos religiosos, mas protege, também, as instituições dedicadas à fé. Não é o Estado que define o que é legal em termos de credo de um determinado grupo religioso. Somente o próprio grupo religioso é que pode definir qual seu padrão doutrinário, quais as bases de suas crenças. O Estado não pode nunca avançar no terreno de definições nesse campo, sob pena de privilegiar um grupo, geralmente majoritário, em detrimento de todas as demais religiões.

É um projeto, portanto, que também atenta contra a liberdade religiosa. Afinal, a exemplo que dei, se um grupo quiser retirar do texto milenar referências que, segundo sua fé, não seriam mais apropriadas ao mundo moderno, o Estado poderia proibir essa atitude?

Ademais, a garantia de pregação da Bíblia, que também é objeto do Projeto, é completamente desnecessária, afinal, a liberdade religiosa já inclui a cláusula que dá total possibilidade para a propagação pública de crenças, podendo-se, inclusive, praticar o proselitismo, que é o empenho em tentar converter alguém à sua fé por meio de um discurso.

Inclusive, no julgamento da ADO 26 no STF, que criminalizou a homotransfobia, aquela Corte teve o cuidado de destacar, à luz da nossa Constituição, que a proteção dada ao público LGBTQIA+ não implicava na criminalização dos discursos religiosos contrários à homossexualidade ou à transexualidade, proferidos por qualquer meio, desde que não consistissem em discursos discriminatórios e violentos. Uso esse exemplo apenas para afirmar – a liberdade religiosa já é garantida pelo nosso ordenamento legal.

O projeto de lei é, portanto, um verdadeiro desserviço à própria religião cristã, em todas as suas múltiplas formas e manifestações, e é atentatório a um Estado que se pressupõe laico, cujas preocupações, em relação às religiões, é de lhes dar proteção aos seus locais de culto e de colaboração nos interesses mútuos, mas nunca de definição daquilo que é matéria de fé.

Eu sou Alberto Tapeocy, esse foi mais um conteúdo para Coluna “Direitos Fundamentais” da Rádio CBN Amazônia/Rio Branco, toda quinta, a partir das 7h.

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